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A mostrar mensagens de julho, 2022

Desmorrer

 Vendi me por uns cêntimos de calor. Achei me barato e deixei me ficar, num silêncio abafado.  Não ambiciono ter valor. Não quero  ser procurado. Muito menos encontrado.  É tão confortável estar na redoma e não tentar sequer sair.  Seguro, sem correr o risco de cair ou cortar-me nos estilhaços da quebra.  Basta aguardar o fornecimento de ar em doses quase insuficientes mas regulares. Esperar que o tempo aconteça sem mácula ou incómodo, além da privação.  Além da ansiedade de não saber quanto tempo resta.  Os gemidos de dor tornam-se um costume e a certa altura já nem se ouvem. E fico. Um e outro dia. Numa decisão apoiada na fraqueza e no medo de perder um grande conjunto de nadas.  Nadas que aparentemente preenchem. Nadas que dão tudo o que não faz falta. Nadas totalmente dispensáveis.  Amanhã é tarde. E hoje já passou.  Não há mais tempo a perder. Nenhum ter no mundo é maior do que o ser.  O tempo de ser é curto. Curto demais ...

A memória e a dor

 Rasgos de memória lembram me de um tempo que não acabou. Sinto a brisa, e recordo os aromas que trazia consigo. Ao longe o mar chama. E o solo impele-me na sua direcção. Contrario o impulso e deito-me no chão num gesto brusco e impensado. Limito-me a congelar toda a dinâmica e ficar só a olhar as figuras que as nuvens desenham no céu e os riscos dos aviões que aleatoriamente me incomodam a paisagem. Acredito por momentos que a vida é feita do algodão doce que as nuvens fazem lembrar. E ali fico horas a fio a simular a perfeição, em paralelismo com a dimensão onde deixei o corpo estendido.  Quando retorno, todo o solo se mantém inalterado. Os montes as valas, o chão onde estou e o mar ao fundo a clamar, continuam lá.  Sinto o rosto queimado pelo sol e pelo vento. Mas volto leve. E com o cheiro do algodão doce gravado na memória.  Algum equilíbrio  surge. Dura mais uns passos até tombar de novo na próxima viagem entre várias dimensões de uma mesma realidade....

Inquietude

Era ali. E não tinha mais nada a não ser coragem. Nu aos olhos do mundo. O móbil era escasso , e traduzia-se numa acção fria e desajustada. O caminhar trôpego e cambaleante era rotina. Mas nunca parar havia sido motivo de ponderação.  Sem sapatos, experimentava o calor do alcatrão de Agosto. E lembrava que tudo o que estava para trás, tinha sido muito mais difícil. Não eram os meros 80° que o breu sugeria que travariam o ímpeto. Num correr constante, era a dor o aliado que motivava a procura das sombras escassas e inconsistentes das árvores raquiticas e pobres de folhagem. Austero consolo para quem a inquietação não permitia a demora no  humilde oásis. Nada sustém quem almeja a vitória no final da odisseia. Nada prende o sonho de um homem livre. Por mais fortes que se demonstrem as amarras. A privação da liberdade física afeta apenas os pobres de espírito. É o sonho que avança destravado por caminhos sinuosos e realiza. O que solta o homem não está no corpo. É a força da alma ...

O caminho

 O que é o caminho? O que é? São as pedras que piso? Ou é a direcção do vento? Será o canto longínquo que tende chamar pelo meu nome? Ou é apenas o tempo a passar? Não sou de parar mas não forço a subida. Não imponho o meu crer mas não compro tudo o que querem que creia. Tentar convencer alguém, é feio, aos meus olhos. Talvez não o seja para todos.  Estimo a verdade. Embora a definição seja vaga. Há muitas verdades para um mesmo evento. Tantas quantos olhos o observam. De dentro e de fora, dos lados ou de cima.Arrisco a dizer que não há certo e errado. Há sim, formas de olhar.  Opinar é humano, mas é arriscado. O prenúncio da morte chama os abutres. E vê-los a pairar faz o moribundo acreditar que o tempo que resta é menor.  O relógio não estagna. E tudo o que incomoda impede o viver, já de si curto para aprender.  Temer o mundo em volta e calar a voz que quer sair, é sofrer. A inverdade latente nesse existir cai sobre os olhos como uma venda e agrilhoa pelas mã...

Querer

 Trago a alma no bolso, enrolada como uma linha. Augurei outros fados, outras paragens. Mas mudei de rumo. Rodei noventa graus sobre um pé e segui noutra direcção. Passo a passo temi. E tremi. Dancei e cantei, ébrio de querer. Carpi mágoas, morri de amores e renasci. Dobrei cabos das tormentas e enchi-me de boas esperanças. Volvi o meu mundo tantas vezes quantas ele quis rodar. Ganhei. Perdi. E sempre que perdi, ganhei também.  Dei as mãos às mãos que aceitei. E a outras que não pedi.  Ouvi em silêncio.  E a partir dessa surdina fiz discursos intermináveis. Devia ter ouvido mais. Ás vezes, apesar de toda a atenção , a inquietação não nos deixa ouvir o que nos é dito. Só ouvimos o que a nossa alma quer.  Não termino aqui o relato. Ou talvez termine, não sei. Não é o balanço final, porque não sei quando acabarei. Se o for, não foi por querer.  Também não é um inventário. Não se inventaria o viver, nem se vive quando só interessa colecionar o espólio para o co...

Gritar

 Espalhar palavras silenciadas.  Falar alto em surdina, gritando ao mundo sem inquietar ninguém. O grito já não tem como objectivo entrar no ouvido como outrora foi a sua razão de ser.   Só quer sair da garganta. Perdeu a vontade de provar ao mundo ou de procurar resposta. FIcou apenas a necessidade de soltar as amarras que contêm os braços.  Numa atitude aparentemente fria mas profunda, do alto da montanha, projeta-se um brado vindo das entranhas, enquanto todos os vasos sanguíneos da cabeça se fazem ver. Faria doer os tímpanos mais duros, assim tivesse destino.  Todo o esforço resulta num cansaço tal que as pernas têm dificuldade em manter a verticalidade, tremendo em anúncio de desmaio. Tudo em vão. É sabido que há muito que ninguém ouve as vozes que ecoam no espaço.  Acabaram-se os ouvidos em riste que absorviam cada grito e o transformavam em condescendência e compreensão, devolvendo por vezes alguma paz interior. Todos gritamos desenfreadamente ...

Surreal

Nada mais que real. Pouco, muito ou nada, mas real. Amorfo. No limiar da lógica. Estranho e imprevisível. Fora do normal mas pelo absurdo.  Ao sabor do vento que se mantém calado. Impossível de compreender pelos meios mais comuns.  Em constante automutilação, mas aparentemente, no caminho certo, embora perdido.  Trazido pela ausência de ser aplicável. Mobilizando-se apenas quando a inércia é vencida pelo movimento alheio.  Contradito e contrafeito.  Envolto numa barreira fictícia que lhe cobre a visão e a aparência. Estupefacientemente adormecido. Incapaz e incompetente.  Digno de outras palavras inaplicáveis a qualquer outra espécie.  Em coma existencial com prognóstico reservado. Sem esperança de acordar, graças à overdose anestésica do autoperdão.  Assumidamente demitido do acto de admitir.  Escadas sem degraus, são mais que suficientes para a ascensão vertiginosamente descendente da sua condição.  Calcula mentalmente o tempo passado ...

Olá mãe

Olá mãe.  Está frio aqui. Mas não vou para outro lado.  Também não sei voltar para trás. Não me ensinaste, felizmente.  Ainda tenho a espada e o escudo que me deste. Da cota de malha já pouco resta. Mas habituei-me a sentir o frio dos gumes contra o corpo.  Não tenho pressa .  Fui deixado aqui pela maré e ela sabe o que faz. Se aqui me deixou, ou  mereço ou preciso de aprender algo para a próxima paragem. O tempo responder-me-à.  Sabes, a maré já me arrastou a outros lugares . Muitas vezes deixou-me lá com a pele rasgada pela turbulência. Mas assim, senti menos dor nas lutas que travei.  Lutei com Monstros, Dragões e outras figuras que julgava só existirem nos contos. Venci alguns. Outros deixaram-me marcas que nunca esquecerei. Mas não me tombaram. Porque não me ensinaste a voltar para trás. Felizmente.  Ninguém viu o sangue que derramei nos triunfos nem as lágrimas das derrotas. Nunca fiz questão de contar. Nem me interessa se alguém soube ...

As mãos também choram

As mãos também choram. A consistência das lágrimas é afectada pelo passar do tempo. Endurecem de tal forma que deixam de correr. Como elas, também o peito congela. Toda a carne cai prostrada, consequência da força anímica disponível. Por coincidência, jaz junto ao que resta de homem, uma pilha de folhas amassadas e um lápis meio rombo, entre garrafas de whisky vazias, copos partidos e cinzeiros cheios em pirâmide. E é aí que as mãos, quase sem querer, tentam explicar o que lhe vai por dentro. Inicialmente deposita frases aleatórias no papel, numa letra quase imperceptível. À medida que o texto encorpa, no peito, algo que estava esquecido acontece.  Estica uma segunda folha contra o joelho das calças sujas e quase rotas.  A clareza da letra aumenta e dá por si a afiar o lápis, raspando o grafite contra um caco de vidro. Após isto senta-se no chão. O texto flui agora com outra cadência. A mão não pára. E o peito desata-se.  Subitamente uma gota cai na folha deixando uma man...

Introdução

 Abro com um texto de um blog antigo. Data de 7 de Agosto de 2015. Chamava-se "diário de um pedinte" . E este excerto "Rapere in jus". Expressão em latim que significa protelar ou arrastar na justiça.  Ainda me toca reler o que ficou para trás. Mas o que fica para trás não é mais do que isso. Basta guardar lições e conceitos.  Continua algures na blogoesfera este conjunto de palavras que transcrevo para aqui: Rapere in jus Devagar. Não falta tempo. Inocentemente paciente. Soletro palavras, que poderia dizer com fluidez, para aumentar a demora. Conto até três passando pelos quatro quartos e  por vezes vou aos oitavos. E começo de novo à mínima suspeita de engano.  O ponteiro move-se lentamente, o mundo abrandou só para mim, na espera de um sinal. Demoro a fazer cada gesto e a completar cada passo, pois tal como o rumo, a pressa deixou de fazer sentido neste novo contar. Eis que surge um espelho que me mostra que algo não está certo... Tons grisalhos, pele enrugad...