As mãos também choram
As mãos também choram.
A consistência das lágrimas é afectada pelo passar do tempo. Endurecem de tal forma que deixam de correr. Como elas, também o peito congela. Toda a carne cai prostrada, consequência da força anímica disponível. Por coincidência, jaz junto ao que resta de homem, uma pilha de folhas amassadas e um lápis meio rombo, entre garrafas de whisky vazias, copos partidos e cinzeiros cheios em pirâmide. E é aí que as mãos, quase sem querer, tentam explicar o que lhe vai por dentro.
Inicialmente deposita frases aleatórias no papel, numa letra quase imperceptível. À medida que o texto encorpa, no peito, algo que estava esquecido acontece.
Estica uma segunda folha contra o joelho das calças sujas e quase rotas.
A clareza da letra aumenta e dá por si a afiar o lápis, raspando o grafite contra um caco de vidro. Após isto senta-se no chão.
O texto flui agora com outra cadência. A mão não pára. E o peito desata-se.
Subitamente uma gota cai na folha deixando uma mancha. Surpreso, constata: uma lágrima! E de seguida um mar ensopa a folha. Aos poucos tudo à sua volta ganha cor e cheiro. Quando os olhos secam, todo aquele cenário lhe parece doentio.
Levanta-se, lava demoradamente a cara com água gelada e percebe que não é ali nem agora. Há um pouco mais para ver. E a água gelada corre já por todo o corpo, marcando o recomeço.
Recolhe o lixo para apagar o que passou. Abre a janela e a luz trata do que faltava. Um arrepio percorre-o de alto a baixo. É hora de tentar de novo. Se possível pelo mesmo caminho, mas agora, sabendo o que o espera.
Se não fosse aquela folha o que teria acontecido? Talvez mais nada dali para a frente.
As mãos também choram.
E salvam.
Comentários
Enviar um comentário